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A greve dos caminhoneiros sob o enfoque jurídico

O Brasil foi pego de surpresa pela maior de todas as mobilizações sociais, com consequências diretas na vida das pessoas. Não se trata de servidores públicos querendo reajustes salariais, mas, sim, de greve dos caminhoneiros, motivada pela alta do preço do diesel. A paralisação resultou na interrupção de fornecimento de gasolina, voos aéreos, aulas, distribuição de alimentos, remédios e outros bens e atividades.
Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Explicitamente, quer o movimento a redução de tributos
que encarecem o frete, ou seja, a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), o PIS e a Cofins (ambos federais) e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS – estadual), bem como o fim do pedágio para o eixo suspenso (quando caminhões circulam vazios).
O movimento alastrou-se e diversas atividades foram suspensas, com ou sem razão. Apanhado de surpresa, o governo federal buscou uma composição amigável. Entrou em acordo com 10 dos 11 sindicatos que representam a categoria, reduzindo em 10% o preço do diesel proposto pela Petrobras e a zero a alíquota da Cide. Registre-se que não cabe ao Poder Executivo Federal deliberar sobre o ICMS devido aos estados nem sobre o pedágio nas rodovias estaduais.
Paralelamente, a Advocacia-Geral da União ingressou com inúmeras ações na Justiça Federal, e 26 liminares (DF, SP, RJ, AM, SC e outros) foram concedidas, determinando a desobstrução de rodovias. Na sexta-feira (25/5), a questão chegou ao STF, onde o ministro Alexandre de Moraes concedeu liminar, autorizando o governo a utilizar as forças de segurança pública para desbloquear rodovias ocupadas pelos caminhoneiros e arbitrou “uma multa de R$ 100 mil por hora às entidades que interditarem as vias e de R$ 10 mil por dia aos motoristas que não liberarem as estradas”1.
No entanto, expressiva parte dos caminhoneiros não seguiu a orientação de seus líderes e continuou a obstruir as principais rodovias do país, deslegitimando seus sindicatos. Em outras palavras, o movimento tornou-se autônomo, e o acordo celebrado com o Poder Executivo não gerou os efeitos esperados.
Esta revolta de toda a classe, que não é ideológica, mas, sim, uma luta de empregadores e empregados, estes afirmando seu direito à própria sobrevivência, certamente tem fortes justificativas. Por outro lado, é alimentada pelo amplo conhecimento das falcatruas feitas em órgãos públicos, reveladas após a Ação Penal 470 (o chamado mensalão) no Supremo Tribunal Federal e que nem mesmo as diversas prisões de políticos e empresários consegue aplacar.
As consequências econômicas da movimentação, independentemente da existência de razão, são desastrosas. A começar pela Petrobras, que perde R$ 47,2 bilhões em valor de mercado e busca recuperar-se economicamente após desastrosa administração em tempos recentes2. No total, as estimativas preveem um prejuízo em torno de bilhões de reais.
Quais as consequências jurídicas desta greve? São muitas e variadas.
As multas diárias impostas em parte das ações judiciais parecem não intimidar os réus. É que, se descumpridas, serão cobradas judicialmente no futuro. Os brasileiros não têm o hábito de levar o futuro em conta, nem mesmo nas suas decisões pessoais. Portanto, o poder de intimidação é reduzido.
Alguns municípios determinaram estado de calamidade pública. Porto Alegre, Brusque (SC), São Paulo, Teófilo Otoni (MG), Caruaru (PE) e outros. Em Santa Vitória do Palmar, no extremo sul do Brasil, o município recebe 10 mil litros de combustível por semana. Com a interrupção, suspendeu o transporte coletivo e de 15 linhas escolares que servem às suas 24 escolas3.
O estado de calamidade pública permite, em caso de perigo público, a requisição da propriedade particular (artigo 5º, inciso XXV), instituto rarissimamente utilizado. Portanto, esses municípios podem confiscar o combustível onde quer que ele se encontre, cabendo ao proprietário valer-se, posteriormente, do direito à indenização.
Do ponto de vista administrativo, o Código de Trânsito Brasileiro estabelece ser infração gravíssima estacionar os veículos nas rodovias (artigo 181, inciso V). A pena é de multa e a condição de gravíssima resulta em multa de R$ 293,47 e 7 pontos na carteira (artigo 258, inciso I).
Sob a ótica da responsabilidade civil, a situação é mais complexa. Os danos são vultosos. O direito de manifestação é assegurado pela Constituição (artigo 5º, inciso IV). Evidentemente, pressupõe-se que ele será exercido sem causar dano a terceiros. É dizer, se a ação extrapolar dos limites do permitido, se vier a tornar-se ilícita, surgirá o dever de indenizar (artigos 186, 187 e 927 do Código Civil). Evidentemente, no futuro ações indenizatórias serão propostas, com altos valores. Só o tempo dirá os que serão apontados como responsáveis (sindicatos, União ou outros).
Finalmente, a responsabilidade penal, a chamada ultima ratio. O Código Penal estabelece, no artigo 262, ser crime impedir o transporte público, punindo tal conduta com pena de 1 a 2 anos de detenção. Portanto, a consumação só se dará com relação aos ônibus, pois automóveis, à exceção de táxis ou de aplicativos, são particulares. A pena máxima de 2 anos remete o caso ao Juizado Especial Criminal da Justiça estadual.
Por outro lado, o artigo 15 da Lei de Segurança Nacional considera delito praticar sabotagem nas vias de transporte, fixando a pena entre 3 e 10 anos de reclusão. Sabotar, segundo o Pequeno Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa, consiste, entre outras coisas, em “dificultar ou impedir (qualquer serviço ou atividade) por meio de resistência passiva”4.
É difícil entrever na conduta inicial dos caminhoneiros uma sabotagem que ponha em risco a segurança nacional. No entanto, a depender da evolução dos fatos, do eventual risco de convulsão social, das consequências que afetem a saúde pública ou outros valores coletivos significativos, não se tem como afirmar, de plano, a impossibilidade de denúncia. Nessa hipótese, a competência será da Justiça Militar Federal.
Mas, ainda que o foco aqui sejam os reflexos jurídicos, na verdade eles estão mesclados com os aspectos políticos. O movimento, ao que tudo indica legítimo, pode sair do controle. A desobediência às lideranças sindicais, mesclada com interesses em utilizar o conflito para as eleições presidenciais, podem levar a consequências imprevisíveis.
O Comando das Forças Armadas reuniu-se na sexta-feira para discutir o assunto5. Na sequência, fuzileiros navais chegaram ao Porto de Santos, para manutenção da ordem6. Se sobrevier o caos, tudo será possível.
Só nos resta esperar que o bom senso prevaleça.

Texto publicado no site CONJUR de autoria de *
(*Desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.)

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