Rafael Possik, médico gastroenterologista e cirurgião, e integrante do corpo médico do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo (SP), é o entrevistado do Dr. Drauzio Varella sobre o assunto.
O
esôfago é um tubo longo que desce pelo tórax na frente da coluna vertebral e
vai desembocar no estômago, numa região chamada cárdia ou junção
gastroesofágica. Com formato semelhante ao da letra J, a volta maior do
estômago é denominada grande curvatura e
a menor, pequena curvatura.
O
estômago pode ser dividido em três partes: fundo gástrico (parte superior junto
à entrada do esôfago), corpo (parte intermediária e principal) e antro onde se
localiza o piloro, ou esfíncter pilórico, na junção com o duodeno. Na (imagem
1), podem ser vistos ainda o fígado, glândula com inúmeras funções metabólicas,
e a vesícula biliar que armazena a bile secretada pelo fígado.
Se
afastarmos o estômago, (imagem 2) por trás dele, aparecem o pâncreas, glândula
que produz enzimas digestivas e
insulina, o baço e novamente o fígado e a vesícula biliar. Em contato com o
estômago, está a porção transversa do intestino grosso que forma um ângulo e
desce para desembocar no reto e no ânus.
Visto
por dentro, (imagem 3), o estômago é revestido pela mucosa gástrica, uma camada
de tecido todo pregueado. É na mucosa gástrica que aparece a grande maioria dos
tumores de estômago. À medida que crescem, eles penetram nas paredes estomacais
e podem disseminar-se por outras estruturas – gânglios, ínguas ou linfonodos –
situadas ao longo da pequena e da grande curvatura, o que agrava a situação.
Desde
que diagnosticado precocemente, o câncer de estômago tem bom prognóstico e
muitos são os casos de cura.
FATORES
DE RISCO
Drauzio
– Quais são os fatores que predispõem ao aparecimento do câncer de estômago?
Rafael
Possik – É preciso considerar que o câncer de estômago pode acometer indivíduos
jovens, com menos de quarenta anos, e indivíduos mais maduros (acima dos
quarenta anos). Nos mais jovens, a doença não está correlacionada a fatores
ambientais e à dieta, mas a fatores genéticos predisponentes. Nos mais velhos,
pesam os fatores ambientais, a dieta especialmente, e a presença da bactéria
Helicobacter pylori,i que tem muita importância no aparecimento do câncer de
estômago.
Drauzio
– Você insistiu na dieta. Há algum tipo de alimento que facilita o aparecimento
de câncer de estômago?
Rafael
Possik - Existem estudos, embora não categóricos, a respeito de alimentos que
podem agredir a mucosa gástrica. O que se sabe é que entre eles estão os
alimentos conservados de forma inadequada e a carne salgada. Esta
especialmente, sob o efeito de bactérias, produz aminas, substâncias que se
transformam em cancerígenas com o passar do tempo.
No
entanto, existem também alguns fatores de proteção, por exemplo, frutas ácidas,
verduras e o leite.
HELICOBACTER
PYLORII
Drauzio
– O suco gástrico é tão ácido que, quando escapa do estômago, provoca
sensação de queimação. Mesmo assim, a
bactéria Helicobacter pylorii é capaz de sobreviver nesse meio ácido e acomete
50%, 60% da população. Qual é a relação entre essa bactéria e o câncer de
estômago, uma vez que a incidência de tumores gástricos é proporcionalmente
muito mais baixa?
Rafael
Possik – Existem algumas alterações focais na mucosa do estômago chamadas de
metaplasias, que se caracterizam por menor produção de ácido e que favorecem a
instalação e o crescimento dessa bactéria, embora nem sempre sua presença seja
fator agressivo e predisponente para o câncer de estômago.
É
importante destacar que o grau de acidez do suco gástrico nos protege contra a
ação de algumas outras bactérias que possamos ingerir. No entanto, às vezes,
por causa das crises frequentes de azia, o indivíduo recorre aos antiácidos, ou
seja, aos bloqueadores da produção de ácido por tempo prolongado. Isso é
perigoso, porque favorece a instalação de bactérias que irão agredir ou o
estômago ou outros órgãos do organismo. Portanto, o tratamento com antiácidos
ou bloqueadores de ácido não deve ser contínuo. Deve ser feito pelo tempo
estabelecido pelo médico.
Drauzio
– Quer dizer que o Helicobacter pylorii se aproveita das metaplasias para
instalar-se e reproduzir-se com mais facilidade?
Rafael Possik – Exatamente. Depois que se
instala, o Helicobacter pylorii provoca alterações na mucosa do estômago que
lenta e progressivamente podem gerar a transformação carcinomatosa.
Drauzio
– Uma coisa curiosa é que a presença de Helicobacter pylorii no estômago pode ser descoberta
acidentalmente, quando a pessoa faz uma endoscopia. Qual é o conceito moderno
que orienta o tratamento nesses casos?
Rafael
Possik – Não existe consenso. Pessoalmente, adoto a seguinte conduta: se a
pessoa fez endoscopia por causa de alguma queixa específica, trato a alteração
que provocou a queixa, geralmente uma gastrite, e o Helicobater pylorii.
ENDOSCOPIA
DIGESTIVA
Drauzio
– No passado, quando não havia endoscopia, o diagnóstico de câncer gástrico era
feito quase sempre na fase avançada da doença. Qual o impacto desse exame no
diagnóstico do câncer de estômago?
Rafael
Possik – Não há dúvida de que a endoscopia facilitou muito o diagnóstico,
principalmente na fase inicial da doença. Entretanto, apesar de terem surgido
endoscopia, raios X, ultrassom e
tomografia, ainda acho que o mais importante é conversar com o doente. Nessa
conversa, é possível levantar algumas características dos sintomas que podem
sugerir onde está localizada a lesão. Por exemplo, se a dor aparece quando a
pessoa se alimenta, é sinal indicativo de lesão no estômago. Ao contrário, se
passa com a alimentação, sugere lesão duodenal.
O
câncer gástrico segue esse mesmo padrão de dor. No entanto, é raro o paciente
com úlcera no duodeno ter câncer gástrico, principalmente por causa da
hipercloridremia, ou seja, o aumento de ácido clorídrico atua como fator de
proteção.
Drauzio
– Vamos repetir esse conceito. Dor que obedece ao ritmo dói-come-passa, em
geral, é duodenal e não tem relação com o câncer gástrico. Já o ritmo come-dói
indica dor gástrica que pode estar ligada ao câncer de estômago, embora possa
ser provocada por outras enfermidades que não o tumor de estômago.

Drauzio
– Voltando ao impacto que a endoscopia provocou nos casos de câncer gástrico,
você poderia especificar qual foi o mais importante?
Rafael
Possik – Acho que a maior conquista que a endoscopia proporcionou foi o
diagnóstico em fase inicial da doença. Atualmente, embora seja raro esse tipo
de intervenção, lesão muito pequena (menor do que 2cm) e bem definida, se não
for um tumor agressivo, pode até ser tratada por via endoscópica.
A endoscopia é um exame fundamental, porque
além de auxiliar no diagnóstico precoce, permite determinar o tipo histológico
da lesão o que torna possível adequar melhor o tratamento e a conduta antes e
depois da cirurgia, uma vez que nem todos os cânceres de estômago são iguais,
têm a mesmas características.
De
qualquer modo, o grande impacto da endoscopia ocorreu mesmo nos casos iniciais,
pois acima de 90% dos pacientes alcançam mais de cinco anos de sobrevida quando
o diagnóstico é precoce. Nos casos avançados, os resultados continuam
praticamente os mesmos de 30 anos atrás.
Drauzio
– Antes, os endoscópios eram rígidos e o exame feito com o paciente acordado.
Hoje, a endoscopia evolui muito, mas ainda permanece o medo de fazer o exame.
Há motivo para isso?
Rafael
Possik – Não há. A endoscopia é um exame praticamente inócuo, feito com o
paciente sedado. A biópsia não dói e ele não sente absolutamente nada. É
importante não se recusar a fazer a endoscopia, porque a chance de cura sobe
para perto de 100%, quando o diagnóstico de câncer de estômago é precoce.
EXPERIÊNCIA
JAPONESA
Drauzio
– A maior experiência com câncer de estômago do mundo é a dos japoneses. Como
eles enfrentam o problema?
Rafael
Possik – Por causa da alta frequência de câncer de estômago que há no Japão, a
detecção da doença é feita em massa. Um ônibus equipado para o exame é enviado
para tirar radiografia do estômago das pessoas de determinada área e, se houver
qualquer dúvida ou suspeita, o portador é encaminhado para a endoscopia.
Com
isso, os japoneses conseguiram que mais de 50%, 60% dos tumores de estômago
fossem diagnosticados na fase inicial, quando o índice de cura é superior a
90%. Nos casos mais avançados da doença, porém, os resultados são muito
próximos aos nossos.
Drauzio
– A incidência de câncer gástrico no Japão é muito alta. O curioso é que o
número de casos cai nos japoneses que emigraram para os Estados Unidos, por
exemplo, mas ainda permanece maior do que na população americana. Isso sugere
que haja realmente um fator genético associado ao câncer de estômago entre os
japoneses, mas que a dieta também influi. Qual a relação entre o aparecimento
desses tumores e a dieta japonesa que muitos consideram saudável?
Rafael
Possik – Parece que os molhos usados nos alimentos atuam como fator irritativo
local que, somado à predisposição genética dos japoneses, favoreceria o
surgimento e o desenvolvimento do câncer gástrico. Mas esse não é o único
agravante. Saquê, fumo, alimentos defumados e muito salgados, como os picles,
também são fatores predisponentes que não podem ser desconsiderados.
É
lógico que nem todos os japoneses que ingerem peixe salgado vão ter câncer de
estômago, mas aqueles que associarem o fator agressivo ao fator predisponente
correrão risco maior de contrair a doença.

Rafael
Possik – Fato semelhante ocorre com as mulheres no Japão. Nelas, a menor
incidência de câncer de mama é atribuída aos hábitos alimentares das japonesas.
TRATAMENTO
Drauzio
– O endoscópio permite tirar um fragmento da lesão, fazer o exame microscópico
e chegar ao diagnóstico. Uma vez diagnosticado o câncer de estômago, o que se
deve fazer?
Rafael
Possik – Primeiro, é preciso determinar o tamanho e a localização do tumor e
estabelecer o estadiamento, ou seja, se ele está ou não circunscrito no
estômago. Se ultrapassou os limites desse órgão, a primeira metástase aparece
nos gânglios, ou ínguas, que se situam em volta do estômago, do lado da pequena
curvatura (lado direito) ou do lado da grande curvatura (lado esquerdo). A
seguir, o tumor pode espalhar-se pelas cadeias ganglionares próximas, ou entrar
na corrente sanguínea e atingir o fígado e outros órgãos.
Quanto
mais precoce o diagnóstico, maior a chance de a lesão ser superficial e ter
atingido somente a mucosa e a submucosa, o que aumenta a probabilidade de cura
para perto de 100%.
Drauzio
– Quanto mais cresce o tumor, mais se aprofunda na parede do estômago, mais se
espalha pelos gânglios em volta e, eventualmente, atinge os órgãos que estão
próximos. E o tratamento?
Rafael
Possik – O tratamento é preferencialmente cirúrgico. Se a lesão está situada na
parte distal do estômago, ou seja, no antrogástrico, retira-se quase o órgão
inteiro, um segmento do duodeno e os gânglios com a finalidade de estadiamento
e tratamento. Deixa-se só o fundo gástrico (parte proximal do estômago, perto
do esôfago), porque o corpo do estômago (parte medial) também é retirado.
O
mais importante, porém, é saber se esses gânglios, os linfonodos, estão
comprometidos porque hoje podemos contar com drogas menos tóxicas que conseguem
melhorar a sobrevida dos pacientes mesmo quando a doença está nos estágios mais
avançados, com comprometimento ganglionar, desde que as metástases tenham sido
retiradas.
Drauzio
– Quando o tumor se localiza no antrogástrico, ou seja, na parte inferior do
estômago, é possível conservar um fragmento do órgão. Quando fica na parte
alta, porém, é preciso retirar o estômago inteiro?
Rafael
Possik - Eu prefiro retirar todo o estômago, embora se possa retirar somente a
parte proximal onde está o tumor. Por paradoxal que possa parecer, a
qualidade de vida do paciente não é tão
boa quando, nesse caso, retira-se apenas uma parte do estômago e, em câncer, é
preciso levá-la em conta e não apenas se preocupar com o tumor.
Hoje
em dia, os índices de sobrevida são bem mais altos. Se o indivíduo vai viver
cinco, dez, quinze anos depois da cirurgia é preciso que viva bem. Às vezes,
apresenta problemas decorrentes da agressão cirúrgica – retirar um órgão é
sempre uma agressão – e é obrigado a tomar alguns cuidados, mas consegue levar
vida normal, alimenta-se bem apesar de não ter estômago e a qualidade
nutricional da alimentação é quase normal.
Drauzio
– Para os leigos, fica difícil entender como a pessoa pode viver sem o
estômago.
Rafael
Possik – A natureza é sábia. Quando se retira o estômago, interpõe-se um
segmento do intestino entre o esôfago e o jejuno. O alimento que cai nesse
local passa pelo duodeno ou vai direto para o intestino. Uma radiografia tirada
dois anos depois da cirurgia mostra que esse segmento está um pouquinho mais
dilatado, formando aquilo que poderíamos chamar de um pseudo-estômago.
Drauzio
– Que cuidados deve tomar um paciente que tenha feito essa cirurgia?

Drauzio
– A bebida alcoólica está proibida?
Rafael
Possik – Não proíbo bebida alcoólica no pós-operatório. O paciente pode beber
moderadamente vinho ou destilados bem diluídos. Em geral, a cerveja não cai bem
e não é por causa do álcool, mas porque tem muito gás. Não estou defendendo o
uso de álcool, mas tenho que admitir que, ingerido com parcimônia, ajuda o
paciente a relaxar um pouco.
Drauzio
– Quanto tempo dura esse período de adaptação depois da cirurgia?
Rafael
Possik – No pós-operatório imediato, o paciente fica de três a sete dias sem
receber alimentação por boca. No começo a dieta é rigorosa, mas depois a
própria pessoa vai selecionando os alimentos que tolera melhor. Em geral,
passado um ano, ela está comendo normalmente, quase sem restrições. É claro que
alguns alimentos (comida gordurosa e frituras) são mais difíceis de
digerir e fazem mal para tanto para quem tem como para quem não tem
estômago.
ORIENTAÇÕES
Drauzio
– O que devo fazer para cuidar bem do meu estômago?
Rafael
Possik – Falar é sempre fácil, mas para cuidar bem do estômago a pessoa deve
evitar o fumo e não deve comer alimentos mal conservados, muito condimentados
nem muito salgados. Parece que a geladeira é um aliado na prevenção do câncer
de estômago.
Além
disso, a pessoa deve fracionar as refeições, ou seja, comer a cada três ou
quatro horas, mastigar bem os alimentos e não tomar antiácidos sem prescrição
médica e por tempo indeterminado.
Outra
medida importante é investigar sempre as causas da dor de estômago,
especialmente se aparecer após a
alimentação. Na maioria das vezes, não é câncer gástrico, mas sempre vale a
pena investigar.
Drauzio
– Pimenta faz mal para o estômago?
Rafael
Possik – Existem trabalhos experimentais mostrando que pimenta não faz mal
nenhum, contudo, na clínica é comum encontrar indivíduos que dizem que a
pimenta piora a sensação de dor.
Provavelmente,
a pimenta provoca vasoconstrição o que diminui a irrigação da mucosa e, consequentemente, a dor aparece, mas nada
está comprovado a esse respeito.
Fonte: Vencer o câncer/Dr. Drauzio
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